Fazia tempo que eu não chorava lendo um livro
Esse é um apelo para quem não lê um livro de fora dos moldes ocidentais: leia A tatuagem de pássaro
Sou chorona nos meus relacionamentos familiares e amorosos, basta uma palavra mal atravessada para que eu caia no choro. Essas lágrimas já me salvaram de situações que poderiam se tornar tóxicas, porque se a pessoa, alvo do meu afeto, diz algo ofensivo, meu corpo reage em um desague intenso.
“respeito muito minhas lágrimas”
Aprendi com a Gal.
Porém, fora do meu mundo emocional, eu pareço uma pessoa bem fria. Claro que já chorei no trabalho e já chorei de tristeza pura (o que acontecia com frequência devido a uma depressão não tratada), mas no geral, costumo ser bem controlada: não choro assistindo filmes, não choro lendo livros, nem escutando música. A ficção não me afeta nesse nível profundo. Poucas obras me deixaram realmente impactada ao ponto de chorar.
Tanto que eu não lembro qual foi a última vez que chorei lendo. Esse momento deve ter existido, claro, eu só não me recordo. Por isso, estou escrevendo essa newsletter para deixar registrado que eu chorei lendo um livro.
O livro em questão é: A tatuagem de pássaro da Dunya Mikhail
Traduzido por Beatriz Negreiros Gemignani e editado pela Tabla.
Livro que lemos no mês de maio no Clube do Livro Alinhavo.
Aproveito para fazer jabá do meu trabalho:
O Alinhavo é um espaço de trocas literárias, onde todo mês lemos livros escritos por mulheres de vários lugares do mundo. Nossa próxima leitura será Sr. Loverman da Bernadine Evaristo e estou muito animada! Você pode participar clicando no link abaixo:
Dunya Mikhail é uma poeta, romancista e jornalista iraquiana, que saiu de seu país natal em 1995 fugindo da censura. Chegou aos Estados Unidos como imigrante, continuou a falar sobre o Iraque, e continuou a escrever em árabe, mesmo depois de se tornar uma professora universitária nos Estados Unidos.
Em seu romance de estreia, lançado em 2021, Dunya nos apresenta Helin, uma mulher de origem iazidi, que foi sequestrada pelo Estado Islâmico. A tatuagem de pássaro foi finalista do International Prize for Arabic Fiction, e chegou no Brasil em 2022. Helin está presa com outras mulheres em uma escola onde esperam para serem vendidas como esposas para membros do Estado Islâmico.
O presente do livro é cruel e violento
Essas mulheres — a mais nova ainda uma criança de 10 anos — são estupradas por soldados, muitas vezes em grupo. A única fuga é o suicídio, que eles tentam previnir ao máximo. O mais assustador é que essa história é baseada em fatos reais, ou seja, em algum lugar do planeta mulheres ainda são encarceradas, estupradas e desprovidas de toda a sua humanidade.
A violência é apresentada a Helin como um benefício: a salvação do inferno. Mulheres sequestradas pelo daich, serão salvas e se tornarão ninfas que servirão os crentes no paraíso.
Na primeira parte do livro a gente acompanha Helin no cárcere coletivo e depois na casa de um dos homens que a compra. É na casa dele que Helin conhece Gazal, e com a nova amiga (Gazal não fala) planeja uma fuga que não se concretiza. Enquanto vive esse presente de completo desespero ela lembra de sua vida no Halliqui, um vilarejo no norte do Iraque, ao lado dos seus familiares e amigos.
Essas lembranças, e a vontade de voltar a ver seus entes queridos, seguram Helin em vida. Ela aguenta calada, mesmo querendo protestar, mas não pode, porque se fizer a violência será ainda pior. Eu me envolvi com suas história: senti a sua dor e torci para que a vida dela voltasse ao normal.
Queria que ela fugisse o mais rápido possível, porém, o livro volta ao passado, em uma época onde as sanções americanas destruíam a economia, usando soldados para proteger o petróleo e invadir casas. De qualquer forma, era um Iraque onde as religiões se misturavam em harmonia.
✨Pausa para divulgar meu trabalho✨
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A segunda parte do livro é o momento onde Helin afirma sua liberdade como um pássaro.
Casou com Elias por amor, em uma ambientação magnifica: o Iraque que conhecemos nessa parte do livro é saboroso, festivo e alegre. O vilarejo de Helin e as pessoas que moram lá são encantadores. É o contraste entre o passado e o presente que deixa sua história ainda mais cruel.
É verdadeiramente impossível não chorar por todas as mulheres que perderam a sua liberdade. Minhas lágrimas vieram na terceira parte do livro, já tomada pelas emoções tão reais de Helin (e dos outros personagens que aparecem com frequência para mostrar o seu próprio ponto de vista), quando os familiares se juntaram para “trazer nossas meninas de volta para casa”.
Azad, Talo, Chammo — homens que também foram presos, mas que conseguiram fugir do cárcere — se juntaram a Abdullah, um comerciante de mel (personagem real, que deu origem a um livro de não-ficção da autora) que se tornou contrabandista de mulheres. Ver a rede que eles criaram (composta tanto por homens e mulheres), dentro e fora do Iraque, para salvar mulheres que foram sequestradas, foi emocionante.
Helin foi salva, Amina foi salva, Gazal foi salva, Laila foi salva.
Quando Gazal passou a fronteira sua voz, sumida desde que ela viu o marido ser assassinado, voltou enquanto cantava a música entoada por outras mulheres no campo de refugiados. Amina voltou segurando um filho do Daich e posteriormente morreu porque queria estar perto dele. Laila, que tinha apenas 10 anos, reencontrou a mãe. Helin, salvou os filhos, e recomeçou a sua vida como refugiada no Canadá.
Toda vez que uma mulher passava a fronteira eu chorava
Pois o que aconteceria do outro lado da barbarie seria muito melhor. Qualquer coisa é melhor do que ser estuprada diariamente. Qualquer coisa é melhor do que ter seu corpo violado. Qualquer coisa é melhor do que viver sem a esperança da liberdade.
Por isso que eu chorei: porque vi essas mulheres recuperarem a própria autonomia.
Elas, enfim, estavam em paz.
Agora eu me pergunto: “e as outras que ficaram para trás?” “e aqueles que morreram enquanto contrabandeavam mulheres?” “e aqueles que ainda estão no meio do conflito, seja onde for?”
A tatuagem de pássaro é um livro sensível, impactante sem ser sensacionalista. É bonito, feio e cruel. Tudo ao mesmo tempo. Tem gatilhos, muitos, mas recomendo a leitura. Dunya Mikhail é uma romancista excelente em vários aspectos, e um livro como esse precisa ser lido e lembrado.
Um adendo importante: o Estado Islâmico não representa os muçulmanos, muitos ajudaram na fuga de mulheres e homens, muitos sentem-se envergonhados de ver o que essas pessoas fazem “em nome de deus”. Não aceito nenhum tipo de intolerância aqui.
Oi, aqui é a Ana Barros, te convido para conhecer meu livro de estréia “As luzes de dois cérebros anárquicos” publicado pela Paraquedas e viabilizado pelo ProAc. Aqui você conhecerá Angela, uma mulher que está buscando a liberdade fora dos padrões sociais (sim, eu e minha eterna busca por liberdade).
Você sabia que eu organizo um clube do livro e podcast onde conversamos com escritoras brasileiras — Clube do Livro Contemporâneas?A última conversa que tivemos foi com a Mariana Salomão Carrara e está muito legal.
Você pode escutar aqui:
Passo para avisar que fiz um vídeo bem completo sobre A vida e morte da Princesa Diana, lá no meu canal, se quiser assistir, vou deixá-lo aqui:
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Obrigada pela indicação do livro, Ana!
E acho a estética da sua news uma lindeza reconfortante 💜🌸