O sucesso da Virginia aumenta na mesma proporção que o número de leitores diminui no Brasil
A CPI das Bets é um reflexo de um Brasil emburrecido que lê pouco
Ano passado saiu a 6ª edição do levantamento "Retratos da Leitura no Brasil" causando um grande burburinho na comunidade de produtores de conteúdo literário do Instagram, porque a pesquisa mostrava que perdemos quase 7 milhões de leitores em 4 anos.
O número nem é tão assustador quando olhamos a pesquisa inteira: ainda somos 93,4 milhões de leitores (considerando a população com cinco anos ou mais).
É um bom número, certo?
Depende.
Porque se olharmos o número de livros mais vendidos em plataformas como Amazon e Publishnews vemos a preferência brasileira para uma certa versão diluída da bíblia, onde o autor faz questão de explicar a passagem, à partir do seu ponto de vista, massificando uma visão de mundo, sem estimular o pensamento crítico.
Sim, estou falando do Café com deus Pai.
Mas, o que isso tem a ver com a Virgínia?
Calma que eu explico.
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A primeira vez que ouvi falar em Virginia Fonseca eu estava em um encontro online do Clube do Livro Contemporâneas — onde lemos mulheres brasileiras e contemporâneas. Disse que amava a Virginia e uma participante perguntou: — a Virginia Fonseca?
— Não, a Virginia Woolf — respondi sem saber que existia uma Virginia mais famosa que a Woolf.
O Clube do Livro Contemporâneas, também é um podcast! A última conversa que tivemos foi com a Mariana Salomão Carrara e está muito legal.
Você pode escutar aqui:
Fiquei sem entender: “Quem era Virginia Fonseca?”
Fui pesquisar. Naquele momento, ela me pareceu inofensiva: uma influencer que tinha se casado com um nepobaby do sertanejo. Até aí nada de errado, cada um faz o que quer. Porém, como o passar dos meses, seu nome começou a pipocar, de maneira negativa, aqui e ali, por seus produtos de qualidade duvidosa e por sua tendência a divulgar golpes.
Uma coisa que poucos sabem sobre mim é que eu sou uma consumidora ávida de canais de fofoca no YouTube (assisto a Beta Boechat, o Jean Luca e as Naty e Isa), por isso, quando a base da Virginia estourou na Internet, eu estava “por dentro” da fofoca.
Após esse momento histórico da internet brasileira — o Felca testando a base da Wepink, a marca da Virginia — a gente não parou de escutar seu nome. Era o bodysplash da Virginia dava vontade de vomitar, a Lipoled feita por Virginia poucos dias após o parto em um hospital fechado apenas para ela, o avião da Virginia, etc.
Virginia sabe usar o ragebait muito bem!
(posso falar sobre ragebait em um outro momento)
Ela é odiada, mas também amada! Virginia tem um número gigante de seguidores fiéis, que desejam a sua vida e adoram tudo criado por dela. São essas pessoas que acreditam em tudo que ela diz, principalmente por seu discurso religioso “toda honra e glória a deus”, e são REALMENTE influenciadas por ela.
Virginia é a representação do sonho brasileiro: menina rica, que chegou lá através do “trabalho duro” e da crença em um deus todo poderoso, mulher padrão — magra, bonita, loira — casada com o filho de um dos maiores sertanejos do Brasil, e mãe dedicada e cuidadosa. Na minha opinião ela representa a estética fascista e cafona da classe média/alta brasileira afeita aos trambiques.
Em janeiro desse ano a Revista Piauí revelou em uma reportagem o maior problema social que estamos enfrentando no momento: o repasse massivo de renda das pessoas comuns para empresas de bets. Um levantamento do Banco Central revelou que os brasileiros estão gastando R$20.000.000.000,00 (eu tive que colocar o número inteiro para mostrar a magnitude do problema) POR MÊS em apostas digitais.
A figura principal desse movimento, em ascensão, das casas de apostas e jogos de azar é Virginia Fonseca.
Ela tem contratos milionários com empresas de apostas, que em sua maioria não estão nem no Brasil (isso é um dado importante, porque não podemos nem dizer que ao menos esse dinheiro fica aqui no país).
Ok, mas o que isso tem a ver com a queda do número de leitores no Brasil?
Agora em Maio saiu uma reportagem do O Globo dizendo que, depois da proibição do celulares nas escolas, o número de livros emprestados em bibliotecas aumentou em 40%. Ou seja, o acesso diário e constante ao celular e as redes sociais diminuiu a nossa capacidade de leitura. Essa pode ser uma constatação óbvia, porém, é legal ter dados reais sobre a troca que fazemos entre o físico e o digital.
Estamos passando mais tempo em nossos celulares do que no mundo físico
E o mundo digital, que tem poucas regras e etiquetas, é tentador. Isso porque temos acesso diário a vida de pessoas que ostentam riquezas antes desconhecidas. A gente vê os ricos de perto: suas mansões, seus carros importados, seus corpos perfeitos. Isso por si só já é motivo de angústia, porque sabemos que nunca “chegaremos lá”. Além disso, a internet, tornou-se uma fonte inesgotável de renda (apenas para alguns, claro), onde influenciadores usam do discurso meritocrático afirmando que você pode ter tudo que ele têm, desde que você compre esse curso aqui.
Eu adoro a internet, acho que existem coisas interessantíssimas por aqui, mas a ascensão da extrema-direita, a volta do conservadorismo religioso, e a propaganda do dinheiro fácil, me preocupam.
Vamos focar na propaganda do dinheiro fácil: influenciadores digitais estão prometendo riquezas inesgotáveis, que você terá acesso se comprar o curso dele, geralmente um curso que te ensina a criar um outro curso, alimentando assim o esquema de pirâmides do marketing digital.
Mas isso ainda não é o pior.
Analisando friamente a história do sistema capitalista vemos que os pequenos comerciantes costumam ter uma vida um pouco melhor (nem de longe ideal, mas melhor) do que os trabalhadores formais sem qualificação. Hoje em dia, o trabalho está tão mal remunerado, que as pessoas estão indo para internet, não para enriquecer, mas para fazer uma renda extra.
Aí que está o maior problema: estão prometendo que as apostas e os cassinos digitais serão uma renda extra. E quem cai nesse discurso, em sua maioria, são as pessoas das classes mais marginalizadas da sociedade. O que faz do discurso meritocrático, de influencers que divulgam casas de apostas, ainda mais cruel.
O brasileiro está colocando o dinheiro da comida e do aluguel em apostas, fazendo uma distribuição de renda assustadora: onde o rico, cada vez fica mais rico e o pobre cada vez fica mais pobre.
Desculpa gente, EU TIVE QUE CITAR O GRUPO AS MENINAS!
Por isso, eu pergunto:
Se essas pessoas tivessem acesso a uma educação de qualidade, uma educação que além de trazer conhecimento, também oferecesse boas oportunidades de emprego, elas estariam nessa situação?
Podemos ir ainda mais fundo: será que se essas pessoas tivessem sido estimuladas a ler, adquirindo um senso crítico durante toda a vida, elas estariam nessa situação?
Eu acredito que não.
Isso não é um problema individual, é um problema social. Não temos, nem nunca tivemos, políticas realmente transformadoras quando falamos de educação. Precisamos urgentemente de uma educação básica completa, que estimula o pensamento crítico, a interpretação de texto e a liberdade de escolha.
Claro, a educação poderia ser pior, mas também poderia ser MUITO melhor.
Esse descaso com os estudos não prevalece só nas classes mais baixas da sociedade, ele está presente em praticamente todas as camadas sociais. Eu sempre digo (e essa é uma opinião minha) que este é o único aspecto social que temos uma igualdade entre classes: o descaso completo pelos estudos. Calma, eu não estou generalizando, existem pessoas capazes de pensamentos complexos em todas as camadas.
Pauso rapidinho (de novo) para avisar que fiz um vídeo bem completo sobre A vida e morte da Princesa Diana, lá no meu canal, se quiser assistir, vou deixá-lo aqui:
Acredito que essa incapacidade de formar um pensamento crítico, foi o que elevou Virginia ao status de super influenciadora.
Existe um motivo para as pessoas seguirem cegamente ela. Existe um motivo para pessoas querem ser como ela. Existe um motivo para as pessoas serem influenciadas por ela.
Esse motivo é, entre outros, a falta de leitura!
A literatura é muito importante para o desenvolvimento do pensamento crítico. E não sou eu que estou dizendo isso, é bell hooks. Em seu livro ensinando pensamento critico ela adiciona a leitura em um de seus ensinamentos:
“Sempre que um público me pede para relatar minha trajetória — da classe trabalhadora negra em uma cidade pequena segregada até me tornar uma conhecida intelectual —, destaco o que significou para mim a leitura e a importância das bibliotecas públicas. Ler permite a todo cidadão desta nação e do mundo assumir responsabilidade cívica. É impossível sermos agentes adequados de nosso ambiente, cuidando de nós mesmos e do mundo, sem a habilidade de ler.” bell hooks em ensinando pensamento crítico - página 203. Tradução de Bhuvi Libanio.
Além disso, existem diversos estudos que relacionam a literatura com poder de formar um pensamento complexo!
Os livros estimulam a interpretação de diversas realidades, nos fazendo questionar e refletir. Lendo ficção, não-ficção, literatura clássica, etc — não importa, desde que sejam livros variados — você pode aprender a questionar, avaliar informações, compreender melhor a natureza humana e estimular a imaginação de maneira profunda.
bell hooks nasceu em uma família pobre, negra e segregada, mas seus pais sabiam da importância da educação e da leitura. Por isso, eles incentivaram a filha a seguir este caminho mesmo sem dinheiro. Na infância bell hooks foi cercada por livros emprestados de bibliotecas (podemos falar da importância das bibliotecas em um outro artigo), o que transformou ela em uma das maiores pensadoras do Século 21.
Isso refuta aqueles que dizem que não leem porque o livro é caro.
O brasileiro não lê porque existe uma cultura de que a leitura e a educação não sãos importantes.
Foi-se estabelecido que a literatura é um luxo
Mas, quem estabeleceu isso só o fez porque não quer lidar com uma população que pensa por si própria. São as mesmas pessoas que xingam Paulo Freire — homem que passou a sua vida alfabetizando pessoas para que sejam livres à partir das palavras e também do senso crítico.
Por que será que esse políticos não gostam do Paulo Freire?
Porque eles querem que você fique no raso, cultuando Virginias, e não saiba pensar sozinho, para assim te manipular. Eu sinceramente acredito que se o brasileiro lesse mais, e de maneira crítica, as propagandas de bets (e outros golpes) e o desejo por acumulação de riquezas provenientes da sedução capitalista, teriam menos impacto social.
Melhor ainda seria a junção da educação transformado proposta por Freire e hooks, com empregos verdadeiramente dignos.
A literatura tem um grande poder de identificação. Histórias são poderosas porque nos vemos nelas. E é à partir da linguagem que a gente conhece o mundo. As narrativas nos afetam pela capacidade de gerar empatia. Além, é claro, do conhecimento que nos proporcionam. Quando lemos nós somos personagens ativos da nossa própria consciência.
“Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescreve-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente.” Paulo Freire em A importância do Ato de Ler.
O problema das bets, não é só o endividamento em massa dos brasileiros
É também reflexo de uma sociedade fracassada, onde políticos não sabem conduzir uma CPI, nem lidar com questões extremamente complexas. Me parece (e eu posso estar errada), que os próprios senadores que estavam ali mediando as perguntas direcionadas a Virginia, também não leem.
O senado virou um circo onde esses ditos representantes da sociedade, usam o picadeiro para aparecer e angariar votos para as próximas eleições, sem nunca trazer propostas que sejam realmente libertadoras. Perdemos a capacidade de estabelecer o pensamento crítico em relação a sociedade ao nosso redor e pensamos apenas em como vamos sobreviver no dia seguinte.
Assim, personalidades como Virginia Fonseca e livros que trazem ideias prontas e mastigadas, como Café com deus Pai, ascendem, apoiando-se no emburrecimento programado da população brasileira (e mundial).
Uma pessoa que não lê, é uma pessoa de fácil convencimento, que não sabe articular, nem manejar um discurso, que acredita em tudo que vê.
Uma pessoa que não passou por uma educação libertadora (usando principalmente a leitura como parte do processo), é facilmente cooptada por movimentos fascistas e anti-democráticos.
Preciso citar bell hooks mais uma vez:
“Atualmente, a maioria dos estudantes simplesmente presume que viver em uma sociedade democrática é seu direito inato; eles não acreditam que devem trabalhar para mantê-la. Talvez nem associem democracia ao ideal de igualdade. Na mente deles, os inimigos da democracia são sempre e somente um “outro” estrangeiro, à espreita para atacar e destruir a vida democrática. (…) Eles não leem John Dewey. Não conhecem sua poderosa declaração, segundo a qual “a democracia deve renascer a cada geração, e a educação deve ser sua parteira.” bell hooks em ensinando pensamento crítico - página 40. Tradução de Bhuvi Libanio.
Precisamos voltar a falar sobre educação — e defender a educação —, precisamos continuar estimulando a leitura!
Precisamos dar um passo para trás e tentar entender como chegamos até aqui.
Precisamos parar de buscar respostas simples para responder questões complexas.
Precisamos parar de fazer gente estúpida famosa.
Precisamos resgatar pensadores sérios, para assim, conseguirmos reestruturar o nosso pensamento crítico.
Precisamos voltar a ler livros de verdade (e não versões diluídas da bíblia).
Porque se não fizermos nada disso os picaretas continuarão.
Uma sociedade que não lê é uma sociedade que está morta, e nem um deus vai nos salvar.
Eu não tenho a resposta para esse tipo de problema, por isso deixo os comentários em aberto para debatermos sobre o assunto.
Porém, espero que você comece a ler um novo livro neste exato momento.
Porque eu tenho quase certeza que a leitura vai te afastar da possibilidade de ser mais um fã influenciável da Virginia.
Oi, aqui é a Ana Barros, te convido para conhecer meu livro de estréia “As luzes de dois cérebros anárquicos” publicado pela Paraquedas e viabilizado pelo ProAc. Aqui você conhecerá Angela, uma mulher que está buscando a liberdade fora dos padrões sociais (sim, eu e minha eterna busca por liberdade).
Crônicas&Cólicas é uma newsletter gratuita, porém, escrever é um trabalho e exige tempo e pesquisa. Então, se puder apoiar o meu trabalho (afinal, tenho boletos para pagar) por apenas R$7,00 mensais.
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