Relatos de uma escritora no mundo dos tarifaços
Qual o problema em ser pessimista, cínica e autodestrutiva?
Acordo, faço a minha skincare, tomo meu café da manhã. Todo dia ela faz tudo sempre igual, como já diria Chico Buarque. Bebo três litros de água e espero o fim do mundo.
Sento para escrever meu segundo livro, mas ele já não é importante.
Ler já não é importante.
Abro o TikTok e só se fala em tarifaço.
Dou graças à deus que nasci brasileira, um país onde o uso da palavra “tarifaço” é comum. País que não será atacado em caso de uma guerra nuclear (pelo menos não em um primeiro momento).
Amei essa palavra: tarifaço.
Ela não é traduzível em outras línguas.
Tarifaço.
Essa é a única coisa que importa para mim no momento: o uso da palavra “tarifaço”. Não são apenas tarifas, são tarifonas, tarifas importantes e em grandes quantidades.
Tarifonas.
Não consigo escrever sobre nada além disso. Até porque sinto que tento tapar o sol com a peneira. Como ensinar escrita em um país que deixou de ler?
Um país onde o livro mais vendido é Café com deus pai?
Um país onde as pessoas precisam de uma pessoa para interpretar histórias bíblicas para elas.
Enfim, saio do TikTok, afinal, pensei em tudo isso em dois minutos — meu cérebro explodirá com tanta informação inútil. Ainda quero escrever, explorar minha criatividade, ajudar as pessoas com as minhas palavras, mas não de um jeito autoajuditivo. Quero mostrar que há saída para o caos que nos metemos.
Mas não há saída.
Estamos nos estapeando nesse capitalismo tardio tentando sobreviver de migalhas. É possível criar algo honesto neste momento onde não temos um minuto de paz? Acredito que sim, porém, para mim é difícil sentar e escrever um segundo livro, porque minhas palavras soam pessimistas, cínicas e autodestrutivas.
Qual o problema em ser pessimista, cínica e autodestrutiva?
Muito se fala sobre a positividade tóxica, mas e a negatividade saudável? Aquela negatividade que se transforma em ódio que será o gatilho para transformações? Não sei, mas acho que falta ódio, não o ódio gratuito e cancelador das redes sociais. Estou falando do ódio que se articula em mudanças. Uma rebeldia concreta que se perdeu por conta das muitas informações diárias que recebemos. Abro o TikTok de novo e está tudo tão diluído. Por isso a escrita se faz importante.
Acredito que é o nosso dever como escritores sermos honestos com nossos sentimentos e escrita. Não sabia o que saíra deste texto quando comecei a digitar. Ele saiu de mim, assim sem preparo, sem regra, sem solução. Precisamos escrever sobretudo aquilo que mais fere.
Escrever sobre o tarifaço e sobre o café com deus pai.
Escrever sobre a negatividade saudável. Escrever sobre escrever.
Escrever, apenas.
Fazer skincare e beber 3 litros de água por dia para estar saudável e bonita quando tudo se acalmar e a positividade tóxica voltar a ser o maior dos nossos problemas.
Atenciosamente,
Ana
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"Precisamos escrever sobretudo aquilo que mais fere." interessante esse trecho. faz muito tempo que faço planos de ter uma news e minha trava era: queria escrever com honestidade, poder dar voz a incômodos e feridas, mas isso dá medo. estava sendo covarde mas comecei a sentir como se fosse explodir de tanto calar. é um processo, mas concordo. escrever sobre o que mais fere não ésó sobre resistência, é sobre não enlouquecer. obrigada por partilhar <3
Acho, sinceramente, que essa profusão de pensamentos e esse apego a hábitos rotineiros que mais parecem parte da gente sejam uma forma da nossa pesona meio que se defender dessa galera que replica as alheias.
Se leem querem ler o que todos os outros leem, se fazem querem fazer o que todos os outros falam que é certo, e na ferida ninguém quer tocar. Não que precise ser muito profundo, basta se reconhecer no próprio universo e tá de ótimo tamanho, mas as vezes as pessoas nem construíram isso. Ai fica complicado.
Flertar com o cinismo literário as vezes pode ser divertido também. Como esse texto, Ana. Se você se deixou levar e não buscou um rumo (a princípio) é, talvez, uma forma de honestidade.